O Lidador

Foto da ficha policial de José Oiticica

Sou aquele que vai de fronte erguida,
Entre turbas hostis ou indiferentes,
Cheio de bênçãos para os maldizentes,
Certo do que serei na minha vida.

                     Domador de demônios e serpentes,
                     Tenho a índole e as manhas do que lida.
                     Para o arranco final da acometida
                     Minhas células todas vão contentes.

Tenho alma de guerreiro e missionário,
Mãos de ferro e palavras de evangelho...
Fui herói num passado legendário.

                    E, Poeta da Anarquia, anjo do povo,
                    Fecho as portas cardeais do templo velho
                    E ilumino o altar-mór do templo novo


José Oiticica
1919

Dúvidas



Quanta ilusão!... o céu mostra-se esquivo
E surdo ao brado do universo inteiro...
De dúvidas cruéis prisioneiro
Tomba por terra o pensamento altivo.

                       Dizem que Cristo, o filho de Deus vivo,
                       A quem chamam também Deus verdadeiro,
                       Veio ao mundo remir do Cativeiro,
                       E vejo o mundo ainda tão cativo!

Se reis são sempre reis, se o povo ignaro
Não deixou de provar o duro freio,
Da tirania, da miséria o travo.

                       Se é sempre o mesmo engodo e falso enleio,
                       Se o homem chora e continua escravo,
                       De que foi que Jesus salvar-nos veio?


Tobias Barreto

(Publicado no jornal proletário  A Obra, São Paulo 14/07/1920)

Aos Operários


E agora oh! Produtor, oh! Férvido Operário
Que escravo, sonolento, exausto e moribundo
N’um século de luz, sucumbes sem vestuário,
Faminto e obcecado, inerte e gemebundo:

                          Não esperes jamais que o Estado, teu coveiro,
                          Te venha defender das garras da riqueza:
                          O Estado é teu verdugo, O Estado é carniceiro,
                          O Estado é a burguesia, o Estado é a torpeza!

Os maiores ladrões e os grandes criminosos
Ali vão se acoitar buscando impunidade!
Só eles são os bens, nós somos “perigosos”
Defendendo a Justiça e exigindo a Verdade!

                         Os homens do poder impedem que se aspire
                         A flor da liberdade, a estrela do Anarquismo!
                         Porque ele vem trazer por certo quem conspire
                         Contra os crimes senis do falso socialismo!

É por isso que espero e sonho o Povo unido,
Soldado, camponês, doutores e operários
Na mesma inspiração de um Ideal Partido
Que destrua de fato a força dos sicários!

                        Eu quero ser humano e praticar a Justiça!
                        E vê-la praticada em todo este universo...
                        E desejo igualmente a extinção da cobiça
                        Pela união geral desse povo disperso!

A terra não tem dono! As terras se tranqueiam!
E entretanto ainda existe a tal propriedade!
P’ra dividir o Mundo em pátrias que guerreiam
Combatendo o Direito, o Amor e a Liberdade!

                       Abaixo esta justiça iníqua que se vende!
                       Abaixo as leis do pobre e não dos abastardos!
                       Que tal desigualdade o nosso brio ofende
                       E nos faz com razão eternos revoltados!


Adalberto Vianna


Foto: manifestação de rua de operários grevistas em São Paulo durante os anos 1910. Fonte: TOLEDO, Edilene. Anarquismo e sindicalismo revolucionário: trabalhadores e militantes em São Paulo na Primeira República. São Paulo: Perseu Abramo, 2007. 

O vômito



Esse mundo sempre a sufocar
E eu ali sem concordar
Mas para conseguir a sobrevivência
A mim mesmo era preciso negar
Tinha que aguentar a existência
Que corrói minha essência...
Por liberdade sempre a gritar

                    O estudo e o trabalho a oprimir
                    Um banquete pra me alimentar
                    Goela a baixo devo empurrar
                    Muitas coisas fui obrigado a engolir
                    Mas me recuso porém em as digerir
                    Na cara dessa sociedade elas hão de voltar

Não da forma bonita
Como na mesa estavam a apresentar
Mas cortada, mastigada, engolida
Para seu conteúdo verdadeiro mostrar

                   Que a outros venha a enojar esse vômito
                   Para que também de seus estômagos
                   para fora venham tudo colocar
                   Ainda a tempo de não se contaminar
                   com toda essa porcaria que nos fizeram alimentar

E não é pois esse alimento
que ao corpo dá o sustento
é comida ideológica
Que naturaliza o poder
Que escraviza ao que comer
A reproduzir do sistema a lógica
a mesma que o irá esmagar
Como podem aceitar ?

                   É tortura física e psicológica!
                   Ou a continuam tolerar
                   Ou se colocam contra ela a lutar
                   Só na segunda opção
                   É a que alguma solução
                   Poderão os povos conquistar


Luiz Aurélio
junho-2011

Operário em construção


Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as asas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Nao sabia por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa quer ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato como podia
Um operário em construção
Compreender porque um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento

Além uma igreja, à frente
Um quatel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Nao fosse eventuialmente
Um operário em contrucão.
Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma subita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão
Era ele quem fazia
Ele, um humilde operário
Um operario em construção.
Olhou em torno: a gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Nao sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que nao havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro dessa compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele nao cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Excercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edificio em construção
Que sempre dizia "sim"
Comecam a dizer "não"
E aprendeu a notar coisas
A que nao dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uisque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução

Como era de se esperar
As bocas da delação
Comecaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação.
- "Convencam-no" do contrário
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isto sorria.

Dia seguinte o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu por destinado
Sua primeira agressão
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vao sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras seguiram
Muitas outras seguirão
Porém, por imprescindivel
Ao edificio em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Nao dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo contrário
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher
Portanto, tudo o que ver
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse e fitou o operário
Que olhava e refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria
O operário via casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

- Loucura! - gritou o patrão
Nao ves o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Nao podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martirios
Um silêncio de prisão.
Um siêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silencio apavorado
Com o medo em solidão
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arratarem no chão
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construido
O operário em construção


Vinicius de Moraes

O Açúcar


O branco açúcar que adoçará meu café
Nesta manhã de Ipanema
Não foi produzido por mim
Nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro
E afável ao paladar
Como beijo de moça, água
Na pele, flor
Que se dissolve na boca. Mas este açúcar
Não foi feito por mim.

Este açúcar veio
Da mercearia da esquina e
Tampouco o fez o Oliveira,
Dono da mercearia.
Este açúcar veio
De uma usina de açúcar em Pernambuco
Ou no Estado do Rio
E tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana
E veio dos canaviais extensos
Que não nascem por acaso
No regaço do vale.

Em lugares distantes,
Onde não há hospital,
Nem escola, homens que não sabem ler e morrem de fome
Aos 27 anos
Plantaram e colheram a cana
Que viraria açúcar.

Em usinas escuras, homens de vida amarga
E dura
Produziram este açúcar
Branco e puro
Com que adoço meu café esta manhã
Em Ipanema.


(Ferreira Gullar)

Declaração de um Anarquista


Quem foi que disse que eu tenho de ordenar meus pensamentos?
Ser normal, ser racional?
Porque não posso seguir meus instintos?
Ser animal, ser passional!
Porque tenho que aceitar tudo o que me impõe?
Sua moral deturpada.
Seus ensinamentos ultrapassados.
Sua ética hipócrita.
Suas leis corrompidas.
Suas instituições falidas.
Seus deuses, seus ídolos, suas mentiras.
Quem foi mesmo que estabeleceu tudo isso?
E a partir de quando foi estabelecido?
Dos seus túmulos, velhos homens regem o mundo.
Porque não posso criar meus próprios valores,
ter minhas próprias idéias,
acreditar nas minhas verdades,
e almejar meus ideais sem ser rotulado como um anormal?
Onde está o meu livre arbítrio?
Minha vida pelas suas regras é sem sentido,
pois isso nunca teve nada a ver comigo!
Quando conseguirei romper os grilhões que me oprimem?
Alcançarei eu um dia a tão desejada felicidade?
Duvidas... duvidas... duvidas...
Onde é que está a minha liberdade?
E no meu intimo surge uma verdade:
Se a sociedade é a gaiola eu sou o pássaro,
se eu sou o peixe ela é o aquário.
E o que eu quero, nada mais é do que voar entre as nuvens
e vagar dentre os mares.


Edson "Boina" Gonçalves

À ponto de bala



poesia é o grito libertador
independente das máscaras vestidas
onde o corpo é o principal ator
já o poeta andarilho errante das calçadas

                         guerreiro & clown
                         mestre do processo alquímico
                         em transformar um robô mental
                         alguém potente a'balo sísmico

guilhotinador da medusa-serpente
produzida por poderes capitalistas
enfrenta o poeta
protegido por um misterioso repelente
avante bandeira negra urrando gritos anarquistas

                        desejando & gozando o fardo do parto:
                        palavra-navalha ensanguentada
                        provinda do coração infarto
                        último fôlego insistindo em continuar
                        encantada


Junho, Brasil - um país que não existe

Mariano

http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs?cmm=70091&tid=5636953999734793146

Vento da Subversão


Queria ser como o vento
o vento aparece assim
de repente
ninguém sabe ao certo
para onde ele vai
e nem de onde vem
Pode ser uma brisa suave
ou um vendaval impetuoso
um tipo de vento curioso
para uns agradável
para outros perigoso

                    O vento voa livre
                    tentar aprisioná-lo
                    é perda de tempo
                    não há como detê-lo.
                    E em busca da liberdade
                    ele continuará a vagar
                    mesmo que possa aparentar
                    que pelo mundo voa a esmo.

Mesmo que de vez em quando
sozinho
se feche em algum redemoindo
ele segue seu caminho
Persegue seus intentos.
Mais juntando com outros ventos
pode formar vendavais maiores
na ação e no efeito
sem dúvida melhores

De ventos em multidão
surge um poderoso furacão
para a antiga paisagem podre
terror e destruição
Violento e brutal
ritual de purificação
Descartar o inútil e prejudicial
Não constitui desperdício
Mais pode ser o início
De um processo sem final
De construção de benefícios.

                    Oh, ventos da revolta !
                    Sinto em mim sua energia eólica
                    Tenho por amiga a teimosia
                    E a liberdade ideal em primazia

Nosso tempo carrega uma lógica
Que o vento tenta romper
Para que emerja outra ótica

                    Olho para um mundo de dores
                    É possível solução ?
                    Quem dera os trabalhadores
                    Soubessem que em suas mãos
                    Habita um poder infinito...
                    Capaz de aniquilar senhores
                    Transpassar montanhas e abismos
                    Saquear e realizar, idéias e gritos
                    Que outrora foram dos sonhadores.

Mas... aqui, que posso eu ?
O vento sacode meus cabelos
Quero voar também !

                   Que esses ventos sejam meus
                   Que esses ventos sejam seus
                   Que os ventos não fiquem sós
                   Que um vento seja eu
                   Que os ventos sejam nós.

(Luiz Aurélio)

A Ordem


Ó Juízes! Eu sou a figura austera
que todo o mundo adora e  respeita e venera
Sem mim não poderia o orbe social
gozar a paz serena e ultra-celestial
que atualmente usufrui. Eu sou seguramente
o mais forte e tenaz esteio do Existente
Sem mim a Sociedade era como um abismo.
Eu protejo na sombra a mão do Despotismo
Quando ela avança, oculta, e busca estrangular
entre garras de tigre, a alma popular.
Guardo, como um alão, das iras malfazejas
os palácios reais, os bancos e as igrejas,
para que o Capital, o Trono e a Reação
façam tranqüilamente a sua digestão.
Em volta dos bordéis, tavolagens, mosteiros,
passo a noite a rondar com meus quadrilheiros
pra que ninguém perturbe a alegria epicúrea
de quem busca o prazer nos braços da Luxúria.
E quando algum Fabulas se alçaprema à sacada
onde o espera, febril, a doce namorada,
sou eu que lhe segura a escada resistente,
- isto para evitar o escândalo somente...


Poesia: Campos Monteiro


Pintura: Saturno devorando seus filhos - Goya



Atroz realidade


Fui Encontrá-lo em desespero infindo...
A sua casa onde imperava a fome
Abrigo dava a um querubim tão lindo,
Quase a finar-se n’um sofrer sem nome.

                           Na enxerga, a um canto, a companheira, rindo,
                           N’um riso louco o existir consome
                           Sente que a vida, se lhe vai fugindo
                           Sem forças ter pra que essa fuga dome...

Há dias já que essa família exausta
Que força teve pra um labor atroz
Respira a Morte por não ter um pão,

                         Enquanto à porta a humanidade fausta
                         Passa, fingindo não lhe ouvir a voz
                         Que em breve cansa de clamar em vão.


A.S.R. Torres
Publicado em "Emancipação", revista quinzenal, Rio de janeiro, em 01/05/1905.

Marselhesa Anarquista

Greve 1917- Porto Alegre

Eia, rebelde, para a rua,
Formemos todos nós legião!
Nossa alma cheia d’ódio estua,
Ruge violenta como um leão!

                 Chega o momento da vingança,
                 Basta de fome e de sofrer!
                 Com a submição nada se alcança,
                 Tudo se alcança a combater!

Chega o momento da vindicta,
Vem teu direito reclamar!
Todo esse povo que se agita,
Todo é de irmãos, vai batalhar!

                 Vamos! A luta que te invida
                 não é de iguais, não, contra-iguais;
                 não é a luta fraticida,
                 Que faz dos homens animais;

Não é a luta repelente
Que entre si fazem as nações,
Em benefício unicamente
Dos financeiros tubarões...

               A nossa luta é santa e nobre,
               E tão sagrada como o ideal,
               É o doloroso afã do pobre
               Contra a opressão do Capital.

Todos seremos bons soldados,
Sem generais a dirigir;
Todos seremos compensados,
Quando a vitória nos sorrir!

                Não são riquezas que queremos,
                Que o ouro é o veneno mais atroz;
                As honrarias desprezamos,
                Que não há deuses entre nós.
A todos cabe igual direito,
Somos irmãos de igual valor;
Pois, a uma voz negamos preito
Ao que tornar-se ostentador.

                Vamos! A luta que fascina,
                Que para a rua nos atrai
                Não é a vil guerra assassina
                Que a toda parte lança um ai!

Escuta bem! Não ouves perto,
Do prelio, o estrepido viril?
Não vês que sopra do deserto
Um furacão torvo e febril?

                Pois é coitada espécie humana
                Que ora desperta e, com altivez,
                Se empunha numa raiva insana,
                Contra o inimigo, o vil burguês;

Pois é o simun da alta Justiça
Que vem varrer o mundo, enfim,
Das perversões e da injustiça
Que o fazem tão cruel assim...

                  Eia, rebelde, se tens fome,
                  Se estás cansado a sofrer;
                  Se a tirania te consome
                  As alegrias do viver,

Ergue-te e vem, torna-te um bravo,
Pelo ideal luta também.
Enquanto fores um escravo,
Somente és digno de desdém!


Raymundo Reis

*Publicado no antigo jornal operário “O Trabalhador”, esse poema foi publicado também com o título de A Canto dos Rebeldes.

LIBERTARIAMENTE

Um dia essa Humanidade,
Se si mesma em pleno império,
Sem mais crença, e sem mistério,
Gozará felicidade?...

                   Anarquismo é bem-Comum,
                   Onde há, deveras, justiça;
                   Em o qual valor nenhum
                   Goza o escravo da Preguiça...

Anarquia é LIBERDADE.
É se ter autogoverno,
Transformado a vida-inferno
Em vida-felicidade!...

                  Governo de espécie alguma...
                  - AUTOGOVERNO em função -
                  Uma FRATERNIZAÇÃO
                  Que o BEM-MÁXIMO resuma.

Ter-se a plena consciência
Do DEVER e do DIREITO...
Sem o menor preconceito,
TRABALHO E AMOR E CIÊNCIA.

                 Sem Rei, sem Religião.
                 Buscando sempre a VERDADE
                 E a mais fraterna UNIÃO
                 Entre toda a Humanidade!

Não mais brutal FORÇA-ARMADA
Sustentando o CATIVEIRO...
Mantido pelo DINHEIRO
Que tanro aflige e degrada...

                 Nada de PROPRIEDADE
                 - Nem pessoal, nem estatista!
                 TUDO A COLETIVIDADE!
                 Sempre o BEM-COMUM à vista.

JESUS foi contra a fortuna...
Contra as armas de ferir...
Instituíra uma COMUNA...
É fácil de deduzir!...


Bezerra Da Cunha

A cidade


Sinto a repulsa dos dominadores...
Sou novo, sou ateu, sou anarquista;
Não sigo a mesma norma dos doutores
E ergo, acima das baias, minha vista.

                         Aperto, entre meus dedos compressores,
                         A garganta da casta comodista;
                         Anuncio outra lei e outros valores;
                         Sou a palavra santa que conquista.

Vou sozinho, arrostando o ódio dos amos...
E em pó, no topo da colina extrema,
Indico ao povo a Sião para onde vamos:

                        Vamos para a cidade iluminada!
                        Vejo-a ao longe, a faiscar, como diadema,
                        Entre a prata e os carmins da madrugada.


José Oiticica
-1919
Por que estás assim triste? Vem pugir-me
O peito esse profundo meditar...
Vamos! A fronte erguida! Passo firme!
Não vês o espaço aberto ao teu olhar?

                 Tens devassado todos os mistérios
                 À força do teu braço e pensamento,
                 Poder sozinho derrubar impérios
                 E tens medo de por-te em movimento?

Sacode os membros teus entorpecidos
Mostra aos que julgam ver-te moribundo
Que és um leão de tétricos rugidos,
Que um dia pode avassalar o mundo!...


Joaquim dos Anjos,

Publicado em “A Voz Operária”, Campinas, 13/01/1920

Pangéia Libertária


Vamos derrubar as fronteiras nacionais!
Dizei aos senhores e governos: - ide!
Não há mais superiores pois somos iguais
A caminhar unidos pelo Mundo Livre

Sem mover de volta qualquer placa tectônica
Vamos todos formar uma nova Pangéia
Compor uma humanidade  harmônica
Livre dos horrores da discriminação e da guerra

Luiz Aurélio
2011

Esqueçam-se de que um dia fui vivo


Hoje eu rasguei a minha carta de alforria,
Cavei um buraco para atirar meu corpo
Clamei pelos bafejos da morte, amaldiçoei a vida
Reuni corvos, urubus e outras aves de rapina
Em torno de minha alma que também sofria.

Relapso hoje, ontem um bakuninista
Vítima algemado a um país católico petista
De bandidos a senadores que não sanam dores
E cidadãos miseráveis; deputados inimputáveis,
Na puta que pariu todos os seus dissabores
Estado que definha sob nossas vistas.

Faço vistas grossas, desapercebido
Passo e sigo cabisbaixo como um casuísta,
Suborno o que em minha vida tinha de são
Renego a bandeira negra que hasteei em vão
Cuspo no evangelho que bêbado escrevi
O que restou de resto de mim foi esquecido.

Tropeço em minhas dúvidas, esquivo
A danação invoco, os maus agouros
A revolta hostil dos berberes mouros
E a perseguição imposta pelos cristãos,
Como Pilatos lavo minhas mãos,
Esqueçam-se de que um dia eu fui vivo.

Danton Medrado

O Grito Libertário

O grito que os bravos companheiros,
Lançaram com vontade no passado
Continuam a ecoar em nosso meio
Desafiando a propriedade e o Estado

            Enquanto perdurarem opressões
            A criar seres humanos humilhados
            Perdurarão rebeliões
            Quando da humilhação ficam cansados

Se tolas décadas separam...
Une o elevado ideal de liberdade,
Os que em outras épocas lutaram.

            Ao futuro deixo uma verdade
            Serei também dos que gritaram
            Contra o poder e a autoridade


Luiz Aurélio
julho 2011

A Atração


No princípio, era o Nada, o Pai de tudo...
Um trepor sem consequências nem fricções,
O que vai ser provendo o seu conteúdo:
Vaivém de inalações e exalações.

                   Súbito... Ôm!... o Choque um no cosmos mudo...
                   O recomeço das fatais reações!
                   O Alento urdindo um raio-luz, agudo,
                   E enchendo a Essência, a Mãe, de turbilhões.

E o ressôo desse choque plasma normas
E as chispas vão moldando etéreas formas,
Prenúncios de metais, células e eus...
 
                  E, assim, meu eu, centelha alucinada,
                  Traz em si atrações para esse Nada
                  E esta lembrança de ter sido Deus!


José Oiticica

A saudação

Irmãos, eu vos saúdo! Embora presos,
Ameaçados, malditos, sem futuro,
Temos, em nossos braços indefesos,
Asas de anjo e tendões de palimuro.

            Estes focos azuis em nós acesos
          - Luz da grande cidade que procuro -
           Hão de arder ante os sápratas sorpresos,
           Quando for lei o que hoje é sonho puro.

- Guerreiros da Anarquia - os sofrimentos
São para nós auréola e honra sublime,
E mais no honram quanto mais violentos.

           Tenhamos por bem vindas nossas dores,
           Que a dor aos homens justos não oprime
           E torna os mais humildes superiores.


José Oiticica
1919

Rebelião

Com gemidos agoureiros,
Num pavoroso lamento,
Lá fora perpassa o vento
Chicoteando os pinheiros.
E a noite, caliginosa,
De uma tristeza suprema,
É como a boca monstruosa
Da monstruosa caverna.


                Chove. O arvoredo farfalha
                Soturno o trovão ribomba
                Como longínqua metralha;
                Depois o silêncio tomba.
                Pávido e trêmulo, escuto,
                Mergulho a vista lá fora
                E vejo a terra de luto,
                E oiço uma voz que apavora.

Como um vago murmúrio,
Mansa a princípio ela ecoa,
Depois de um grito bravio
Que pela noite reboa,
Que para a noite se eleva
Num pavoroso transporte,
Como soluço de treva,
Como um frêmito de morte.

                   Essa voz cheia de ameaças,
                   De imprecações e rugido,
                   É o clamor das populaças,
                   É a voz dos desprotegidos.
                  Medonha, relutante e rouca,
                  Vem d’esse mundo sombrio
                  Dos que tiritam de frio
                  E não tem pão para boca.

Vem das lôbregas choupanas
Onde em tarimbas sem nome
Há criaturas humanas
Agonizando com fome.
Vem da cloaca deletéria,
Em que a “Justiça” comprime
Esses que a mão da miséria
Pôs no caminho do crime.


                  Doa quartel – açougue enorme
                  Onde à espera da batalha,
                  Morta de fadiga, dorme
                  A carne para metralha.
                  Dos hospitais, dos hospícios,
                  Das tascas onde ressona
                  A grei de todos os vícios
                  Que a miséria proporciona.

Ah! Nesse grito funesto,
Nesse rugido, palpita
Um rancoroso protesto.
É o povo, a plebe maldita
Que, sombria, ameaçadora,
Nas vascas do sofrimento,
Mistura aos uivos do vento
A grande voz vingadora.

                Tremei, vampiros nojentos!
                Tremei, nos vossos dourados
                Palacetes opulentos!
                O sangue dos desgraçados
                Sugai, bebei gota-a-gota.
                Não tarda que chegue o instante
                Em que a turba se levante,
                Sedenta, faminta e rota.

E quando comece a luta,
Quando explodir a tormenta,
A sociedade corrupta,
Execrável e violenta,
Iníqua, vil, criminosa,
Há de cair aos pedaços,
Há de voar em estilhaços
Numa ruína espantosa.


Ricardo Gonçalves

Publicado no primeiro número do jornal A Plebe em 9 de junho de 1917